Os Náufragos da Louca Esperança/Os Amigos dos Amigos, por Nelson de Sá


Em vez de plantar uma tela em cena, Ariane Mnouchkine joga o próprio cinema no palco, em "Os Náufragos da Louca Esperança (Auroras)", espetáculo que apresentou até ontem no Sesc Belenzinho. É o que ela mesma explica, em texto seu de quase 20 anos atrás, reproduzido no programa: "Um dia, em algum dos nossos espetáculos, haverá cinema [mas] só se o cinema estiver no papel de ator de teatro".
Inspirada vagamente em uma novela desconhecida (por mim) de Júlio e Michel Verne, que leio tratar de uma utopia anarquista, a encenação tem um fio condutor narrativo, porém é sobretudo uma apologia aos artistas, atores em especial, mas também diretores _certamente do teatro, mais do que do cinema retratado no palco, com direito a Juliana Carneiro da Cunha como alter ego de Mnouchkine.
Mais precisamente, é um auto-elogio do Tréâtre du Soleil, a companhia que Mnouchkine criou perto de 50 anos atrás.
Com uma sequência extraordinária de cenários, no que seriam quadros de um filme em produção às vésperas da Primeira Guerra Mundial, com parte da narrativa-dentro-da-narrativa adaptada dos Verne, a encenação lembra o Fellini de "E La Nave Va". E não apenas pela presença constante de um navio nada realista, quase um brinquedo, mas pela nostalgia. Remete ao pai da diretora, produtor russo de cinema, mas com certeza mais a ela mesma.
Com três dezenas de atores e músicos e mais de quatro horas de duração, para não falar da refeição depois, parte do rito, é um assalto sem quartel aos sentidos do espectador. Os cenários, as interpretações, a música: é tudo esmerado, arredondado à perfeição.
Mas desta vez saí com um vazio que não havia sentido em encenações anteriores de Mnouchkine. Até sua recusa em usar a projeção de cinema no palco me soou caprichosa, um nada formal.
É como se a própria utopia comunal do Théâtre du Soleil, depois de tanto tempo, fosse um quadro na parede, cores gastas como o tom pastel do figurino. Uma revolução não realizada, esperança naufragada, mas mantida viva na memória de sua diretora nada anárquica; muito pelo contrário, comandante rigorosa das ações e quem sabe dos pensamentos, não só de seus atores, mas do público.
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As coisas não andam fáceis para quem vê teatro de grupo em São Paulo. Peças demais, preparo de menos, mas é sempre bom insistir.
Em contraste com os "Náufragos" mais ou menos influenciados pelo pendor anarquista de Júlio Verne, "Os Amigos dos Amigos", espetáculo curto e delicado criado a partir de um conto de Henry James, consegue com apenas duas atrizes, no pequeno auditório do Sesc Pinheiros, acertar uma faca no coração do público _ou, pelo menos, no meu.
O cenário é decorativo, mas Julia Ianina e Victória Camargo estão afiadas, em suas múltiplas e entrecruzadas personagens. A adaptação ecoa a narração de uma delas, uma mulher que busca reunir uma amiga e um amigo, que jamais se conhecem, apesar das incontáveis tentativas. Com o tempo, o homem se aproxima da narradora, não da amiga. Mas o encontro, afinal, acontece, talvez com o fantasma da amiga, que morre naquela mesma noite, e tudo muda.
A narradora se viu diante de uma concorrente impossível de ser vencida, na disputa pelo amor do amigo: a possibilidade, alegorizada no encontro sempre aguardado, no fantasma de uma mulher _ou de qualquer coisa que inspire esperança de vida, de futuro.
A mesma esperança que, no Théâtre du Soleil de Mnouchkine, parece ter ficado no passado.

Blog Cacilda, 23 de outubro de 2011

Crítica por Dirceu Alves, Revista Veja SP


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Encontro Quase Impossível, por Sérgio Roveri

Não poderia ser mas corriqueiro o desejo de uma das personagens de "Os Amigos dos Amigos", peça baseada em um dos mais famosos contos do escritor americano naturalizado Henry James (1843-1916), em cartaz a partir desta sexta, 20, no auditório do Sesc Pinheiros: ela quer apenas que dois de seus amigos, que tiveram na juventude uma experiência semelhante, e até certo ponto incomum, venham a se conhecer.


Para tanto, promove uma série de encontros entre o casal, todos agendados com uma prudente antecedência. Mas, no dia combinado, um dos dois não comparece, alegando sempre o mais fútil dos motivos. Ora é uma mudança no tempo, ora uma indisposição ligeira, uma viagem inesperada ou até mesmo um esquecimento. O fato é que os anos correm e os dois nunca chegam a se cruzar. Durante muito tempo, a amiga que tenta aproximá-los segue acreditando nas impossibilidades do destino, até que finalmente aceita, embora sem conhecer as razões, que o casal de jovens não quer se conhecer.


Esta sucessão de desencontros poderia resultar em algo maçante, não tivesse o escritor Henry James, autor de clássicos como A Outra Volta do Parafuso (que está sendo relançado esta semana pela Companhia das Letras) e A Fera na Selva, revestido a trama de um clima de suspense que esbarra na fronteira do terror. A começar pela natureza do acontecimento vivido pelos dois personagens na juventude. Ela, na antessala de uma festa, recebe a inesperada visita do pai. Ele, ao entrar no escritório do pai, que julgava vazio, encontra a mãe tranquilamente sentada atrás de uma mesa. Pai e a mãe, no entanto, estavam morrendo a quilômetros de distância no momento exato em que apareceram diante dos filhos.

A peça, resultado da eficiente adaptação do conto feito pelo dramaturgo e diretor Cássio Pires, recebeu o prêmio de Melhor Espetáculo da última edição do Cultura Inglesa Festival. Mais do que preservar o clima sombrio do conto original, Pires usou apenas duas atrizes, as ótimas Victoria Camargo e Julia Ianina, para se revezarem no papel de narradora e de todos os outros personagens da história, num interessante jogo teatral que, em vez de confundir, aguça a curiosidade do público e reforça a pegada sobrenatural da história.

"A ideia de fazer com que eu e a Julia Ianina representássemos a narradora e as demais personagens da peça tem a ver com algo que está no conto do Henry James", diz a atriz Victoria Camargo. "No texto original, assim como no espetáculo, os personagens não têm nome ou uma descrição física . O leitor não consegue construir uma imagem muito precisa de quem são aqueles personagens." 

Diário do Comércio, 29 de setembro de 2011